Daniel Cerqueira*
Publicado originalmente no blog Agenda Estado de Derecho do Programa Estado de Direito para a América Latina da Fundação Konrad Adenauer.
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Há algumas semanas, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, ordenou o bloqueio do aplicativo de mensagens Telegram no país. A decisão foi tomada após o descumprimento de sucessivas ordens judiciais exigindo a suspensão de contas de pessoas do círculo político do presidente Bolsonaro que vinham difundindo notícias falsas sobre o processo eleitoral brasileiro.
No fim das contas, o Ministro deixou sem efeito sua sentença, após o Telegram se comprometer a implementar uma nova política de combate às fake news, que inclui o monitoramento dos canais com amplo número de usuários, a possibilidade de publicar alertas sobre a veracidade duvidosa de notícias, entre outras. Esse artigo aborda alguns elementos da complexa relação entre liberdade de expressão e a necessidade de regular o uso de plataformas digitais para incentivar ações que põem em risco certos pilares básicos da democracia.
Em sua sentença, Moraes frisou as tentativas frustradas do Tribunal Superior Eleitoral de discutir formas de cooperação com a empresa Telegram, afim de adotar políticas de combate à desinformação. Ademais, destacou que “o desrespeito à legislação brasileira e o reiterado descumprimento de inúmeras decisões judiciais pelo Telegram, – empresa que opera no território brasileiro, sem indicar seu representante – inclusive emanadas do Supremo Tribunal Federal – é circunstância completamente incompatível com a ordem constitucional vigente…»
Desde a disputa eleitoral de 2018, em que Jair Bolsonaro foi eleito, os aplicativos de mensagens e as redes sociais têm prevalecido sobre os meios tradicionais de comunicação como ferramentas de difusão de informações, opiniões e debates políticos no Brasil. Apesar do incremento das bolhas ideológicas, onde cada quem busca refúgio em círculos informativos que compartilham os mesmos valores e preferências políticas; basta ter um celular no Brasil para receber um aluvião de notícias falsas, repassadas todos os dias por colegas de trabalho, vizinhos, amigos, familiares, etc. Tais mensagens versam sobre os mais variados temas, tais como a eficácia de vacinas; origem do Covid-19; fatos inexistentes ou declarações falsamente atribuídas a personagens da vida pública; teorias conspiratórias de todo tipo; entre outros.
O que sucede no Brasil é parte de uma tendência global onde os inegáveis benefícios “da era da informação” trouxe consigo o germe da pós-verdade. Quando as plataformas digitais são utilizadas para manipular as crenças de centenas de milhões de pessoas, dissolve-se no ar a sólida máxima liberal, segundo a qual a livre circulação de ideias e opiniões, por mais absurdas que sejam, é a única forma de conhecer a verdade. Tal máxima remonta-se ao clássico On Liberty, de 1859, onde John Stuart Mill indaga sobre os limites que a sociedade deve assumir perante as liberdades individuais. O filósofo britânico reconhece que certas liberdades podem ser restringidas para não causar danos às de outras pessoas. No entanto, conclui que a liberdade de expressão deve possuir uma esfera excepcional de proteção em comparação com as demais.
A postura de Mill inspirou as instituições jurídicas e os marcos constitucionais de várias democracias ocidentais. Por exemplo, a Corte Suprema dos Estados Unidos desenvolveu, no caso New York Times Vo. vs. Sullivan, em 1964, a chamada doutrina da real malicia, mediante a qual se permite somente sanções civis contra quem publica informações falsas, devendo o demandante provar que a pessoa processada atuou con negligência manifesta ou pleno conhecimento da falsidade da informação. Cortes de outras tradições jurídicas e órgãos internacionais de direitos humanos seguem um roteiro similar, baseado na não-intervenção no livre fluxo de ideias e informações.
A Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana (CIDH) assume, precisamente, em seu princípio dez (10), a doutrina da real malícia. Em similar sentido, as normas que compõem o quadro constitucional das democracias liberais e dos organismos de direitos humanos normalmente proíbem a censura prévia, inclusive perante discursos que promovem o ódio nacional, racial, religioso ou de outra índole, não obstante as sanções ulteriores ou bloqueio a posteriori da informação respectiva.
Naturalmente, os parâmetros previamente descritos não alcançam a complexidade do uso de plataformas digitais para manipular o debate eleitoral em contextos hiperpolarizados como o brasileiro. Se fizermos uma genealogia de tais parâmetros, chegaremos a uma versão utilitária do liberalismo político do século XIX, onde a não-intervenção na circulação de ideias, opiniões e informação é uma condição para encontrar a verdade. Não necessariamente uma verdade científica, ontológica ou metafísica, mas, sobretudo, a verdade factual, sobre se algo efetivamente ocorreu e as circunstâncias na qual ocorreu.
Nós, brasileiros/as, somos testemunhas de que esse tipo de verdade desvaneceu na esfera política, a tal ponto que uma parte minoritária, porém significativa da população, está convencida de que o Partido dos Trabalhadores distribuiu milhares de mamadeiras em forma de penes para incentivar a homossexualidade nas crianças; que as autoridades eleitorais manipularam eleições passadas e voltarão a manipular este ano, para prejudicar o Bolsonaro; que as urnas eletrônicas estão programadas para fraudar a contagem de votos; entre outras asneiras sem qualquer evidência. O relincho informativo é incentivado pelo próprio presidente-candidato, quem difunde todo tipo de tergiversações sobre a integridade do sistema eleitoral brasileiro. À medida que as pesquisas de opinião indicam a derrota de Bolsonaro nas eleições de outubro-novembro, a maquinária de assessores, robôs e apoiadores de carne e osso acudirão cada vez mais às fake news.
Em um relatório de 2019, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH reconheceu que o marco jurídico tradicional que regula a responsabilidade ulterior
“[…] pode ser insuficiente para lidar com o problema da desinformação deliberada [porque] existem razões de escala que dificultam a aplicação desse regime de responsabilidade ao fenômeno da desinformação, bem como a possível natureza anônima do divulgador [e], no caso da disseminação de desinformação, nem sempre se busca prejudicar a reputação de um participante da vida pública ou de uma eleição, sendo muitas vezes um meio para menoscabar um interesse mais difuso, como a ordem democrática, da qual depende a integridade do processo eleitoral. Nesses casos, é evidente que as responsabilidades civis proporcionais não seriam idôneas para proteger tal interesse e o Direito Eleitoral poderia fornecer respostas específicas a essa classe de fenômenos. (pág. 24).
Numa abordagem menos liberal e mais republicana das liberdades individuais num regime democrático, a potestade para autodeterminar as preferências políticas deve ser blindada da possibilidade de atores públicos ou privados manipularem as condições mediante as quais tais preferências são construídas. A julgar pela quantidade de mentiras deliberadas compartilhadas no inframundo da virtualidade informativa no Brasil, decisões como as tomadas pelo Ministro Alexandre de Moraes contra o Telegram são e seguirão sendo necessárias para frear as estruturas da desinformação que buscam semear desconfiança da população no sistema eleitoral e na própria democracia.
* Director do Programa de Direitos Humanos e Recursos Naturais do DPLF.
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