Vítimas de crimes ambientais no Brasil buscam reparação e justiça em tribunais europeus

Como o litigio transnacional pode ajudar a superar a impunidade corporativa?

Daniel Cerqueira* e Letícia Aleixo**

Ver versões em espanhol e inglês.

Diante da incapacidade do Estado brasileiro de brindar respostas efetivas às vítimas de crimes ambientais, foram apresentadas algumas ações judiciais em países europeus nos quais as empresas responsáveis pelos danos se encontram registradas. O presente ensaio busca contribuir para a discussão sobre o litígio transnacional como estratégia para superar a captura corporativa dos processos de licenciamento e fiscalização ambiental no Brasil, a partir da análise dos antecedentes e desenvolvimentos posteriores aos colapsos de barragens ocorridos no estado de Minas Gerais, com participação de empresas de mineração e de engenharia com sede no Reino Unido e na Alemanha.

Em 5 de novembro de 2015, uma barragem de uma mina de ferro da Samarco S.A – de propriedade da anglo-australiana BHP e da brasileira Vale S.A – se rompeu e deu lugar à pior tragédia ambiental registrada no mundo no âmbito da extração mineral, ao menos no que se refere à quantidade de rejeitos liberados – 62 milhões de metros cúbicos. A lama liberada soterrou dois povoados do município de Mariana, Minas Gerais, e asfixiou o Rio Doce, um dos mais importantes do Sudeste brasileiro. A tragédia provocou 19 mortes e, pelas próximas décadas, milhares de pessoas terão que conviver com o impacto ambiental, econômico e com mudanças drásticas nos seus modos de vida.

O ocorrido em Mariana evidenciou a existência de um marco regulatório e de fiscalização permissivo com um modelo de mineração absolutamente irresponsável, sem que tenha existido uma revisão profunda desse modelo nos anos posteriores. No estado de Minas Gerais, em particular, historicamente ligado à extração mineral, foram apresentados projetos de lei com a finalidade de ampliar a segurança das barragens de rejeitos. Foi necessário, porém, o colapso de uma nova barragem, desta vez na cidade de Brumadinho, matando 272 pessoas por soterramento, para que uma nova lei de segurança de barragens fosse aprovada na Assembleia Legislativa do estado. Em 25 de janeiro de 2019, em Brumadinho, colapsou a barragem da mina de ferro do Córrego do Feijão – de propriedade exclusiva da Vale S.A -, derramando 12 milhões de metros cúbicos de lama. O dano ambiental foi inferior ao provocado 4 anos antes em Mariana, mas causou um número bastante superior de vítimas fatais e gerou um profundo impacto no ecossistema local, soterrando parte do rio Paraopeba, um dos principais afluentes do São Francisco que, por sua vez, é um dos mais importantes do Brasil.

A nova lei aprovada em Minas Gerais proíbe a concessão de licença ambiental para novas barragens quando houver melhor alternativa técnica disponível. Além disso, proíbe a construção de barragens em locais com comunidades vivendo a menos de 10 km destas estruturas. Apesar dessas exigências, alguns dispositivos da mencionada lei ainda não foram regulamentados pelo Poder Executivo de Minas Gerais. Na esfera federal, pouco ou quase nada foi feito. Uma comissão parlamentar criada após o crime de Brumadinho apresentou 9 projetos de lei sobre diversas temáticas – licenciamento ambiental, segurança de barragens, tributação da mineração, proteção a atingidos pela mineração, crimes ambientais, defesa civil e prevenção a desastres – porém a tramitação não foi adiante.

Cabe enfatizar que o discurso dos governos federal e estadual segue inflamado contra as medidas de fiscalização e contra o próprio processo de licenciamento ambiental. Tidos como “entraves ao desenvolvimento”, órgãos ambientais são alvos de ataques e de inúmeras propostas de flexibilização. Flexibilização da legislação ambiental foi justamente o que ocorreu em Minas Gerais em 2017, após o rompimento da barragem de Mariana, e que permitiu que o licenciamento da barragem Córrego do Feijão ocorresse de forma mais célere – fator determinante para que ocorresse outra tragédia.

Várias omissões que deram lugar à tragédia de Mariana se repetiram em Brumadinho, em particular a ausência de planos eficientes de evacuação e a presença de zonas povoadas e do próprio refeitório da Vale a poucos metros de distância da rota de lama da barragem. A maioria absoluta das vítimas de Brumadinho são precisamente funcionários da Vale e de prestadoras de serviço da mina Córrego do Feijão. Em ambos os desastres, as empresas responsáveis omitiram o real estado das barragens. No caso de Brumadinho, a Agência Nacional de Mineração (ANM) indicou que a Vale tinha pleno conhecimento dos problemas de sustentabilidade, sem que a agência tenha sido informada a tempo de ordenar a suspensão preventiva das atividades de extração e de engenharia no entorno da barragem.

Somente em Minas Gerais, ocorreram outras 6 rupturas de barragens de mineração antes das tragédias de Mariana e Brumadinho. A frequência com que esse tipo de acontecimento ocorre é resultado de um modelo de mineração no qual as corporações ditam as regras do jogo que regem o licenciamento ambiental, fiscalização, gestão de danos e reparações. No que se refere à fiscalização, são as próprias empresas as encarregadas de contratar estudos de viabilidade e impacto das barragens no Brasil, sem que exista institucionalidade estatal com a capacidade de avaliar a idoneidade de tais estudos. Cabe recordar que em sua primeira entrevista após o colapso em Brumadinho, o então CEO da Vale S.A sublinhou que um laudo geotécnico da companhia de engenharia alemã Tüv Süd certificava a estabilidade das estruturas da barragem e, sob esse argumento, a Vale tem buscado blindar sua responsabilidade.

Por sua vez, a diretoria da Tüv Süd no Brasil tratou de atribuir a responsabilidade do ocorrido às operações de engenharia conduzidas pela Vale, tais como o movimento do maquinário, a construção de dutos de liberação de água e outras operações contrárias às recomendações de segurança da empresa alemã. Poucos dias depois do rompimento, e diante das evidências de que a Tüv Süd tinha certificado a estabilidade de uma barragem que se encontrava à beira do colapso, seus diretores enviaram uma comunicação à Vale, retratando-se de pareceres que certificavam a estabilidade de outras barragens no estado de Minas Gerais. Por outro lado, alguns meios de comunicação publicaram reportagens revelando a troca de comunicações, via e-mail, de funcionários de ambas as empresas, nos quais executivos da Vale teriam pressionado para que a Tüv Süd certificasse a viabilidade da barragem da mina Córrego do Feijão. Em meio às diferentes versões sustentadas pela Vale e pela Tüv Süd, o certo é que ambas as empresas tinham pleno conhecimento dos problemas de sustentabilidade da barragem que veio a colapsar em 25 de janeiro de 2019.

Tão certo quanto a irresponsabilidade corporativa e a inexistência de uma institucionalidade capaz de fiscalizar adequadamente as barragens no Brasil, resulta cada vez mais evidente que o modelo de mineração no qual o Estado e a sociedade se submetem aos desígnios das empresas extrativas não se alterou. A onipotência da Vale em Minas Gerais é de tal envergadura que, em 25 de outubro de 2019, o Conselho Estadual de Política Ambiental de referido estado autorizou que a Samarco volte a operar a mina de ferro de Germano, no mesmo local onde aconteceu o colapso da barragem de Mariana há 4 anos, sem que as medidas de reparação às famílias atingidas tenham sido tomadas. A barragem de Germano é a maior do Brasil, com 129,5 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, mais que o dobro da quantidade de lama despejada em 5 de novembro de 2015. Ainda que a empresa não deposite mais rejeitos nesta barragem – pois fará uso de uma cava em suas novas operações – é de se considerar o risco inerente às atividades para seu descomissionamento durante as novas operações.

Se não bastasse a capacidade da Vale de ditar as regras do jogo na concessão e fiscalização de barragens, sua capacidade de evadir da justiça se fez evidente no caso de Mariana, provocado por sua joint venture Samarco. Até a presente data, não há uma só pessoa condenada e a Samarco conseguiu suspender, reverter ou simplesmente não pagar multas ambientais impostas pelo Ministério Público, governo federal e estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A empresa vem litigando cada centavo de indenização reclamada judicialmente e impugnando multas impostas por órgãos de fiscalização. Extrajudicialmente, desembolsou alguns montantes indenizatórios a um número limitado de vítimas, por meio da Fundação Renova – uma fundação privada criada pelas próprias empresas causadoras do dano, por meio de um acordo entre elas e representantes dos governos federal e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Apesar das vítimas do desastre de Mariana amargarem mais de quatro anos de espera por resposta judicial definitiva, sobram exemplo de dificuldades para que a Vale responda judicialmente pelos danos socioambientais provocados por elas e suas sucursais.

A título de exemplo, após vários anos de ações judiciais contra a empresa Gusa Nordeste, terceirizada preferencial da Vale S.A em Açailândia, estado do Maranhão, 21 famílias do bairro Piquiá de Baixo obtiveram, em fevereiro de 2015, uma sentença em segunda instância ordenando ao estado e à companhia a indenizar a contaminação provocada pelo complexo siderúrgico da citada empresa. Apesar do curso de 15 anos das primeiras denúncias de comunidades que convivem com os resíduos industriais, do pronunciamento de organizações internacionais de direitos humanos e organizações da sociedade civil, da existência de sentenças judiciais firmes e da assinatura de acordos com autoridades locais para realocar os moradores de Piquiá de Baixo, as vítimas da contaminação ainda não foram compensadas e continuam vivendo em uma situação de calamidade socioambiental, sofrendo uma série de efeitos em sua saúde.

Perante o cenário de impunidade corporativa no Brasil, milhares de vítimas do caso de Mariana decidiram apresentar uma ação judicial de compensação contra a BHP – coproprietária da Samarco S.A – nos tribunais do Reino Unido, país onde se encontra registrada. Aderiram às ações extraterritoriais mais de 200 mil atingidos, aproximadamente 600 empresas e 25 municípios, além da Arquidiocese de Mariana. A empresa-matriz, no entanto, pediu a interrupção do processo sob a alegação de que a ação no Reino Unido duplica outras existentes no Brasil e que a jurisdição brasileira é a idônea para solucionar a controvérsia. A decisão sobre competência deverá ocorrer após uma audiência marcada apenas para o dia 9 de junho de 2020. Por outro lado, em outubro de 2019, um grupo de vítimas da tragédia de Brumadinho apresentou uma queixa criminal às autoridades alemãs contra a Tüv Süd e alguns de seus funcionários que participaram da elaboração dos pareceres de estabilidade da barragem de Córrego do Feijão.

Para além da resposta dos tribunais do Reino Unido e do Ministério Público Alemão, esse tipo de litígio expõe perante a opinião pública europeia a maneira como a BHP e a Tüv Süd se beneficiaram do investimento e de contratos realizados a partir de um modelo de mineração permissivo com desastres ambientais. A pressão e as ações contra empresas e países estrangeiros que se beneficiam do atual modelo de mineração deve, por certo, respeitar as formas de organização e o protagonismo das comunidades atingidas, sob pena de reiterar o modelo exploratório Norte-Sul. Nesse sentido, destacam-se iniciativas das comunidades atingidas de buscar sensibilizar instituições financeiras e fundos transnacionais com investimentos em empresas envolvidas nos crimes ambientais ocorridos recentemente no Brasil. Desde então, alguns fundos já anunciaram o desinvestimento em empresas como a Vale, entendendo que seu lucro não poderia derivar de operações irresponsáveis.

É de se considerar também que, mesmo que o resultado das ações impetradas na Europa seja favorável à reivindicação das vítimas, a prestação de contas às empresas de mineração continuará sendo o norte da política ambiental no Brasil. Após o crime ambiental de 5 de novembro de 2015, as mineradoras exerceram um poderoso lobby para impedir a reestruturação do arcabouço legal e das políticas de concessão de lavras em Minas Gerais. Naquele momento, a legislação eleitoral brasileira permitia que empresas privadas fizessem doações a candidatos a cargos eletivos. Foi assim que 17 dos 37 membros da Comissão da Câmara dos Deputados que deliberava o texto do novo Código de Mineração na Câmara dos Deputados, bem como um número considerável de congressistas das comissões parlamentares federais e do estado de Minas Gerais – criadas para investigar as causas do desastre da Samarco – receberam recursos da Vale em suas campanhas eleitorais.

Nas eleições de 2014, a empresa chegou a distribuir, por meio de doações oficiais, cerca de R$82,2 milhões a campanhas de deputados, senadores, governadores e aos três candidatos mais votados à Presidência da República, incluída aí a então Presidente eleita, Dilma Rousseff, e o então governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). É importante notar que as doações da mineradora e suas subsidiárias são concentradas em Estados onde tem operações mais volumosas, como Minas Gerais, Pará e Espírito Santo, mas compreende políticos de todo o espectro de partidos.

Embora atualmente sejam proibidas doações eleitorais de empresas, a obscura relação entre política ambiental e interesses privados é mais prevalente do que nunca no Brasil. O governo de Jair Bolsonaro está determinado a desmantelar o pouco que resta das instituições ambientais. Seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, coleta escândalos e investigações criminais por enriquecimento ilícito e improbidade administrativa, supostamente cometidos para favorecer empresas extrativas, enquanto servia como secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo. A velocidade com que a estrutura de controle ambiental foi desmantelada desde o início do governo Bolsonaro no Brasil é o prelúdio de novas tragédias. O desastre socioambiental que mais repercutiu, produto direto da nova gestão de Bolsonaro e Salles, é o desmatamento sem precedentes da Amazônia. O próximo capítulo da destruição deliberada da Amazônia chegará, precisamente no campo da mineração, com o anunciado envio ao Congresso de um projeto de lei que autoriza a exploração e extração de minas em terras indígenas na região amazônica.

Litígios transnacionais contra empresas, sejam de mineração como a BHP ou prestadores de serviços como a Tüv Süd, impõem uma avaliação mais responsável aos executivos, acionistas e financiadores, ao decidirem investir e realizar operações em um país como o Brasil, onde a tolerância a tragédias ambientais é praticamente uma política de Estado. O mero custo de reputação derivado de ações de indenização e denúncias criminais movidas no Reino Unido e na Alemanha, contra as empresas mencionadas, nos leva a concluir que se trata de uma ferramenta importante para tentar mitigar a impunidade corporativa e a indolência do Estado brasileiro, ingredientes essenciais dos crimes ambientais que cobraram a vida de centenas de pessoas em Mariana e Brumadinho.

 

*Diretor do Programa Direitos Humanos e Recursos Naturais da Fundação para o Devido Processo (DPLF, em suas siglas em inglês)

**Doutoranda em Direito pela UFMG e Coordenadora Operacional PIPAM – Cáritas Brasileira, Regional Minas Gerais

Foto: Brumadinho, Minas Gerais / Wikimedia Commons

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