Santiago Martínez Neira
Em 26 de março de 2017, ocorreu um evento inspirador para todas as comunidades camponesas latino-americanas que enfrentam megaprojetos extrativistas em seus territórios. Em Cajamarca (Colômbia), realizou-se uma consulta popular em que se decidiu sobre a continuidade de La Colosa, um projeto de mineração de ouro de grande magnitude. Foi assim que uma pequena população agrícola enfrentou os interesses do governo nacional e os da multinacional mineira AngloGold Ashanti. Esse processo de resistência cidadã, que começou há vários anos, produziu um resultado nada surpreendente: 97,9% dos residentes de Cajamarca disseram que não concordavam com o desenvolvimento de projetos e atividades de mineração em seu município. Esse resultado não apenas suspendeu La Colosa, mas também provocou uma reação em cadeia. Atualmente, existem 44 consultas populares em andamento.
A consulta popular é um mecanismo de participação direta previsto na Lei 134 de 1994. Por meio dela, é feita uma pergunta de forma geral à população. De acordo com a norma, o resultado é vinculante e obrigatório.[1] Com a Lei 1.757 de 2015, determinou-se que a consulta popular podia ser convocada pelos cidadãos e não apenas pelo prefeito, governador ou presidente, conforme inicialmente se havia designado. Quando isso acontece –como em Cajamarca–, diz-se que a consulta é de origem popular.[2]Frequentemente, a consulta popular é confundida com a consulta prévia, outro mecanismo previsto na Convenção 169 da OIT. A esse respeito, vários esclarecimentos se fazem necessários. A consulta prévia é uma obrigação internacional atribuída aos Estados. Isso quer dizer, em linhas gerais, que os povos indígenas e tribais devem ser consultados antes que se implementem ou aprovem projetos para a exploração de recursos naturais em seus territórios.[3] Por sua vez, a consulta popular é doméstica, facultativa e contempla todos os cidadãos. Além disso, ao contrário do que ocorre na consulta prévia, a lei não estabelece que a consulta popular precise ser realizada antes da aprovação ou execução dos projetos extrativistas. Isso se explica pelo fato de a consulta popular não ser ativada automaticamente, mas a pedido daqueles que a convocam e após se cumprirem os requisitos legais. Por isso, pode acontecer de o governo apresentar projetos para a exploração de recursos naturais que, mais tarde, venham a ser interrompidos devido ao resultado da consulta popular.
Um dos argumentos mais recorrentes entre aqueles que promoveram a consulta popular em Cajamarca foi o de que a execução de La Colosa colocava em risco a água, um recurso vital para a economia agrícola e para a sobrevivência da comunidade. De fato, está bem documentado que a exploração do ouro consome grandes quantidades de água, e que tanto as fontes como os corpos de água podem ser contaminados pela liberação de sulfetos e metais pesados, derramados diretamente na água ou drenados pela terra, causando erosão e sedimentação.
Agora, para além dos números e do resultado esmagador, o que aconteceu em Cajamarca desenterrou velhos debates. Quem deve tomar decisões sobre a governança da água? Pode ser que isso caiba às comunidades que cercam os projetos extrativistas, comumente subestimadas por não dominarem uma linguagem técnica; ou aos governos regionais, sobre os quais reside uma profunda desconfiança pela corrupção generalizada; ou, talvez, ao governo nacional, que domina uma linguagem técnica e diz-se regido pela eficiência econômica, mas, na prática, parece simplesmente não representar os interesses dos seus governados.Como se não fosse suficientemente complexo, esse debate traz à tona outras questões. Como qual modelo de democracia temos? A qual modelo de democracia aspiramos? Pode ser um modelo representativo, em que alguns tomem as decisões que dizem respeito a todos, sob um manto de legitimidade. Também pode ser um modelo deliberativo local –aparentemente mais justo– em que os afetados pela decisão tenham o poder de tomá-la e de determinar os procedimentos para fazê-lo. A verdade é que não há respostas fáceis e é difícil encontrar um equilíbrio. No primeiro caso, corre-se o risco de minar os direitos daqueles que não estão representados e dificilmente estarão; especialmente em países como os da América Latina, profundamente desiguais e, na prática, hipercentralistas. No segundo modelo, corre-se o risco de dificultar e entorpecer a gestão de projetos que eventualmente podem trazer benefícios, mesmo para as comunidades locais.De todo modo, Cajamarca falou e decidiu. E é por isso que devemos questionar como os processos de deliberação e a tomada de decisão podem ser melhorados em cenários futuros como esse. Seguem, aqui, algumas ideias.1. O direito à decisão das comunidades não deve ser subestimado ou ignorado. Pelo contrário, é necessário capacitá-las, ouvi-las e acompanhar os seus processos locais. Com a promulgação da Constituição Política de 1991 na Colômbia,[4] foi possível institucionalizar mecanismos valiosos de participação cidadã, como o conselho aberto, o plebiscito, a revogação do mandato e, claro, a consulta popular. Nesse sentido, seria um retrocesso restringi-la ou extingui-la por meio de novas leis.[5] O problema não é o mecanismo em si, mas que, como país, não tivemos um debate sério e inclusivo sobre como e a que custo praticar a mineração legal em nosso território.2. Consultar não basta; deve-se promover a deliberação. As comunidades merecem estar presentes e no centro dos processos em que os custos, benefícios e riscos de projetos extrativistas como La Colosa sejam avaliados. Consultar para cumprir uma formalidade jurídica é inútil; pior ainda se a decisão majoritária for ignorada. Se o mecanismo for respeitado, e a sua natureza vinculante for abraçada, a deliberação deverá ser levada a sério. Também não devemos cair na ingenuidade de pensar que as partes negociam de igual para igual. Deve-se reconhecer e tentar compensar as desigualdades, e não valer-se delas para ignorar o valor da deliberação.3. É necessário realizar a consulta popular dentro de um prazo razoável e com publicidade. Um dos argumentos utilizados para questionar a existência desse mecanismo é que o mesmo pode minar a segurança jurídica necessária aos investimentos estrangeiros e afogar o Estado em ações judiciais dispendiosas. Isso ocorre, em parte, porque os processos de consulta são demorados e pouco ventilados; e, no final das contas, chegam ao fim quando o trabalho de prospecção ou exploração já se iniciou. Embora nem sempre haja garantias de que a consulta vá ocorrer antes da fase de execução do projeto, se a mesma for realizada com rapidez e publicidade, é possível evitar litígios caríssimos.4. Transparência e responsabilidade são essenciais. Se as comunidades camponesas participarem e souberem claramente os termos em que esses projetos serão levados a cabo, será mais fácil acompanhá-los e denunciar o seu descumprimento. Da mesma forma, para as partes, será mais difícil violar parcial ou totalmente o acordo.Finalmente, seria interessante explorar novas formas de abordar o tema. Por exemplo, quando se analisa o direito à propriedade coletiva das comunidades indígenas, menciona-se a relação especial dessas comunidades com o território. Um relacionamento difícil de entender para aqueles que não compartilham da sua visão de mundo. Vale a pena nos perguntarmos se algumas comunidades camponesas compartilham, preservam e reproduzem uma relação especial com o território onde vivem. Um relacionamento ainda não contemplado pelo direito, em que a terra é algo mais do que o lugar em que crescem os alimentos.
[1] O artigo 8 da Lei 134 de 1994 é muito claro quando afirma: «Em todos os casos, a decisão das pessoas é obrigatória».
[2] O artigo 3 da Lei 1.757 de 2015 estabelece que «o referendo e a consulta popular podem ser originários de uma autoridade pública ou popular».
[3] Para os países que ratificaram a Convenção 169 da OIT e que fazem parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a consulta prévia deve ser realizada: respeitando a anterioridade; de boa fé e com o objetivo de chegar a um acordo; de forma adequada e acessível; com a realização prévia de um estudo ambiental; de maneira informada. Cfr. Corte IDH. Caso dos Povos Indígenas Kichwa de Sarayaku v. Equador. Mérito e Reparação. Julgamento de 27 de junho de 2012. Série C No. 245, parágrafos 180-211.
[4] O artigo 103 da Constituição Política de 1991 afirma: «São mecanismos de participação do povo no exercício da sua soberania: o voto, o plebiscito, o referendo, a consulta popular, o conselho aberto, a iniciativa legislativa e a revogação do mandato. A lei os regulará.»
[5] Restringir ou extinguir este mecanismo seria inconstitucional sob o princípio da não retroatividade. Além disso, o Tribunal Constitucional da Colômbia tem reiterado que «a Constituição Política de 1991 não restringe o princípio democrático à esfera política, mas o estende a múltiplas esferas sociais. O processo de expansão da democracia vai além da reflexão sobre os mecanismos de participação direta e enfatiza especialmente a extensão da participação de pessoas interessadas nas deliberações de órgãos coletivos, além dos políticos.» Tribunal Constitucional da Colômbia. Sentença C-522/02 (MR. Jaime Córdoba Triviño).
Santiago Martínez Neira, Advogado colombiano, assistente de pesquisa na Academia de DH e DIH do Washington College of Law, American University