David Lovatón Palacios
No dia 16 de outubro do presente ano, o Presidente do Brasil, Michel Temer, sancionou uma modificação ao Código Penal Militar, aprovada recentemente pelo Congresso deste país. Tal reforma permite que a justiça militar brasileira volte a julgar militares acusados de crimes comuns (tais como homicídio), perpetrados contra civis, no contexto de operações de segurança interna. Atualmente, o único Estado brasileiro onde as Forças Armadas vêm cumprindo funções de segurança interna de forma regular é o Rio de Janeiro. No entanto, a reforma ao Código Penal Militar possui alcance geral e, portanto, poderia aplicar-se a outros Estados brasileiros onde as Forças Armadas assumam funções de segurança interna.
Perante esta reforma, o Escritório para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), emitiram um comunicado conjunto, no dia 13 de outubro, quando o Congresso do Brasil aprovou o respectivo projeto de lei. Neste comunicado, “expressam profunda preocupação” por esta reforma legal e “instam a que se vete integralmente o projeto de lei, por ser incompatível com as normas internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil”; exorto que o Presidente Temer não atendeu, pois, poucos dias depois, sancionou e colocou em vigência esta reforma do Código Penal Militar.
Tal como tem sido amplamente documentado, as ditaduras militares ou civis que imperaram, na maior parte dos países da América Latina, durante grande parte do século XX, utilizaram a justiça militar para garantir a impunidade frente a graves violações de direitos humanos perpetradas contra civis. Para tanto, contou-se com a cumplicidade ou abdicação da justiça ordinária que, salvo honrosas exceções, não cumpriu seu papel de garante dos direitos fundamentais, cedendo competência aos tribunais militares. Desta maneira, foi comum, neste período, que execuções extrajudiciais ou torturas fossem julgadas – com sorte o eram – como delitos militares de “abuso de autoridade”.
Indubitavelmente, a justiça militar é uma companheira histórica das Forças Armadas na América Latina. Diferentemente de outros ordenamentos comparados, em nosso continente deu-se o primado de um modelo de justiça militar permanente, em tempos de paz, o qual supôs uma organização-modelo de justiça militar permanente em tempos de paz; um sistema judicial com orçamento próprio, além de uma estrutura orgânica dentro do Poder Judiciário.
É o que, tradicionalmente, se denomina “foro militar”, expressão com raízes coloniais que refletia uma ideia de privilegio ou superioridade da casta militar frente ao resto da sociedade que deveriam ser julgados em um foro especial. Durante a luta contra grupos armados ilegais conduzida pelos nossos exércitos durante a segunda metade do século XX, acentuou-se a tradição colonial do foro militar, entendido como privilégio.
No entanto, a instrumentalização da justiça militar como fonte de impunidade frente a graves violações de direitos humanos gerou uma crescente e cada vez mais extensa rejeição nacional e internacional, o que, finalmente, traduziu-se em reformas constitucionais, legislativas e em importantes decisões das Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais latino-americanos, assim como dos sistema universal e interamericano de direitos humanos. Estas reformas normativas, enraizadas em linhas jurisprudenciais, buscaram adequar a justiça militar ao marco constitucional dos nossos países e ao corpus juris interamericano[1] e universal, o que tem significado, fundamentalmente, ainda com nuança nacional, os seguintes quatro grandes avanços:
- A justiça militar não deve ser entendida mais como um privilégio ou “foro especial” a favor dos militares, mas como uma jurisdição especializada, com todas as garantias de um devido processo e de outros direitos fundamentais, naqueles países onde ainda se conserva como una organização judicial por fora da estrutura orgânica do Poder Judiciário. No caso da Argentina, mediante a Lei Nº 26.394, que entrou em vigência no ano 2009, a justiça militar passou a integrar a estrutura orgânica do Poder Judiciário.
- A justiça militar deve ser “restringida e excepcional” em um Estado Democrático de Direito, tem dito a Corte Interamericana de Direitos Humanos em reiterada jurisprudência.[2] Entre outras cosas, isso significa que, tanto o delito de função como a justiça militar mesma, devem ser interpretados e aplicados em forma restringida e com caráter excepcional, pelo qual a vis atractiva competencial corresponderá sempre ao delito comum e à justiça ordinária, respectivamente.
- A justiça militar só é competente para os “delitos de função”, “delitos castrenses” ou “delitos militares”. Ou seja, aqueles ilícitos que vulneram bens jurídicos próprios das Forças Armadas, como a ordem, a disciplina ou a honra. Em tal sentido, já não é competente para conhecer delitos comuns e menos ainda graves violações de direitos humanos perpetradas, seja contra civis ou militares, pois os bens jurídicos em questão, como os direitos fundamentais (vida, integridade, entre outros) são de toda sociedade e do Estado.
Sobre este ponto, cabe mencionar a reiterada jurisprudência da Corte Interamericana, enfática em afirmar que, “se os atos delituosos cometidos por uma pessoa que ostenta a condição de militar em atividade não diz respeito a bens jurídicos da esfera militar, tal pessoa deve ser sempre julgada pelos tribunais civis ordinários. Neste sentido, frente a situações que vulneram direitos humanos de civis, em nenhuma circunstância pode operar a justiça militar”.[3]
- A justiça militar somente possui competência para julgar militares em situação de atividade quando incorrem – como já afirmado – em delitos de função. Por conseguinte, os civis ou militares em situação de reserva não podem ser julgados por tribunais militares, tal como também estabeleceu o máximo intérprete da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “o Estado deve estabelecer, através da sua legislação, limites à competência material e pessoal dos tribunais militares. De tal forma, em nenhuma circunstância um civil pode ser submetido à jurisdição dos tribunais militares.”[4]
Similar critério interpretativo foi utilizado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)[5] e diversos Comitês do Sistema das Nações Unidas. Por sua parte, o artigo IX da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado dispõe que “os suspeitos dos atos constitutivos do delito do desaparecimento forçado de pessoas só poderão ser julgados pelas jurisdições de direito comum competentes, em cada Estado, com exclusão de qualquer outra jurisdição especial, particularmente a militar…”
Tal é o nível de desenvolvimento do corpus iuris interamericano em relação à justiça militar, que o atual vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Eduardo Ferrer Mac Gregor, indicou que, até o ano 2013, dita Corte havia “decidido 21 casos sobre jurisdição militar em exercício de sua competência contenciosa, o qual representa pouco mais de 11,04% do total de casos em matéria de justiça penal decididos até a data… Em relação à aplicação da jurisdição militar em violação do Pacto de São José, foram condenados sete países: Perú (7), México (4), Colômbia (3), Chile (2), Venezuela (2), Equador (1), Nicarágua (1) e República Dominicana (1)”.[6]
A academia latino-americana também compartilha esta posição reformadora, atravessada pela justiça militar nos últimos anos. Em um estudo regional comparado, publicado no ano 2010, o especialista Juan Rial assinalou que “Vários países da América Latina estão realizando um processo que leva a uma forte mudança nesta velha instituição: a justiça militar. Em alguns casos, se busca sua eliminação ou, ao menos, uma profunda limitação do chamado foro militar. Entre outras, busca-se reformulá-la e dar garantias, para que os civis não possam ser submetidos a ela, que os militares contem com garantias de um devido processo e normas claras para ajustar sua conduta, e para que as possibilidades de um marco jurídico de caráter sumário para tempos excepcionais estejam fortemente limitados.”[7]
Todos estes avanços ao redor da justiça militar no continente americano buscam, finalmente, que a mesma já não seja uma ilha ou circuito fechado dentro do Estado de Direito, mas uma jurisdição especializada mais, com todas as garantias e direitos da função ou ramo judicial, evitando que volte a converter-se numa fonte de impunidade perante graves violações de direitos humanos cometidas não só contra civis, mas contra o próprio efetivo militar.
Vários Estados da América Latina – como é o caso do Brasil – enfrentam, atualmente, sérias crises de segurança interna, nas quais os corpos policiais, ocasionalmente, são derrocados pelo crime organizado. Nada obstante, a militarização da ordem interna não é a solução[8] e menos o retorno do processamento de violações de direitos humanos pelos tribunais militares. Toda evidência empírica mostra que a reivindicação das tarefas de segurança interna pelas Forças Armadas em outros países da América Latina, como México, Guatemala, Honduras ou El Salvador, não implicou uma resposta eficaz contra o crime organizado. Ao contrário, os trabalhos de inteligência policial, a colaboração da cidadania e um sistema judicial independente tem se mostrado efetivos neste sentido.
Desta maneira, a recente reforma do Código Penal Militar sancionada pelo Presidente do Brasil é uma política ineficaz de combate ao crime organizado. Ademais, situa a dito país em um retrocesso democrático absolutamente incompatível com o corpus iuris interamericano e outras obrigações internacionais que o Brasil se comprometeu a honrar quando ratificou a Convenção Americana e outros tratados de direitos humanos. Sem dúvidas, é um mau exemplo para nossas frágeis democracias no continente americano e que, por fim, deveria ser objeto de controle de constitucionalidade e convencionalidade, tanto em sede nacional quanto internacional.
[1] Corpus iuris interamericano compreendido não somente pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos do nosso sistema regional, mas também pela vasta jurisprudência da Corte interamericana e os relatórios da Comissão Interamericana, pois ambos órgãos são os intérpretes da Convenção.
[2] “em um Estado democrático de direito, a intervenção do foro militar deve ser restringida e excepcional, de forma que se aplique unicamente na proteção de bens jurídicos de carácter castrense que hajam sido vulnerados por membros das forças militares no exercício de suas funções” (Sentença de mérito no caso “Nadege Drozema vs. República Dominicana”, parágrafo 187)
[3] Sentença de mérito no caso “Radilla Pacheco vs. México”, parágrafo 274.
[4] Sentença de mérito no caso “Palamara Iribarne vs. Chile”, parágrafo 256.
[5] “Os tribunais militares do Estado podem decidir casos relacionados a integrantes das sus próprias forças armadas pelos delitos vinculados com as funções que a lei designa a ditas forças… Os tribunais militares, no entanto, não podem decidir casos sobre violações de direitos humanos ou outros delitos que não guardem relação com as funções militares, que deverão ser julgados por tribunais civis” (CIDH, Relatório sobre terrorismo e direitos humanos. Washington DC, CIDH, 2002, parágrafo 18).
[6] Ferrer Mac Gregor, Eduardo, Las siete principales líneas jurisprudenciales de la Corte Interamericana de Derechos Humanos aplicable a la justicia penal. En: Revista IIDH Nº 59. San José de Costa Rica: Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH), 2014, pp. 59 y 60.
[7] Rial, Juan (compilador), La justicia militar, entre la reforma y la permanencia. Buenos Aires: Resdal, p. 11.
[8] “La Comisión desea insistir en una de sus preocupaciones centrales en relación con las acciones implementadas por los Estados Miembros en el marco de su política sobre seguridad ciudadana: la participación de las fuerzas armadas en tareas profesionales que, por su naturaleza, corresponden exclusivamente a las fuerzas policiales.” (CIDH, Informe sobre seguridad ciudadana y derechos humanos. Washington DC: CIDH, 2009, párrafo 100)
David Lovatón Palacios, Professor titular da Pontificia Universidade Católica do Perú, Consultor de DPLF
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